Você conhece aquele ditado romano que diz “Mai’na gioia”? Traduzindo para o português, é como se disséssemos: nunca uma alegria…. A ideia deste dito popular é mais ou menos a seguinte: nunca podemos ter um momento pleno de felicidade, sem que, a qualquer instante, algo venha a perturbar nossa serenidade. Por exemplo, quando um romano acredita, ingenuamente, ter encontrado um lugar para estacionar o carro no caótico trânsito da cidade e, quando se aproxima, percebe que tinha um Smart estacionado no local ele diz: “Mai´na gioia”!
A palavra “gioia” em italiano possui esse significado de alegria/satisfação, enquanto a palavra “gioiello”, por sua vez, significa joia, propriamente, em português. Usamos esse trocadilho de palavras para apresentar a vocês o lugar que acreditamos ser uma das mais belas e preciosas joias de Roma: Trastevere, o bairro queridinho tanto de turistas, como dos próprios habitantes da Città Eterna. Acreditem, os motivos para se alegrar em Trastevere existem sim, e são muitos!
Mas, afinal, o que tem de tão especial neste que é um dos principais destinos turísticos e boêmios de Roma? O que atrai tantos visitantes em todas as épocas do ano?
A resposta para essa pergunta é uma perfeita harmonia entre fatores históricos, culturais e estéticos, os quais resultam em uma deliciosa sensação de se estar no cenário de um filme. As charmosas e estreitas ruas de pedras que nos remetem à época medieval são realmente muito peculiares. É difícil descrever em palavras o sentimento de chegar a este lugar no coração de Roma, ainda tão preservado e resistente às mudanças do tempo. Quando se está em Trastevere, muitas vezes parece que o tempo, de fato, parou.
Durante essa encantadora viagem no tempo, o melhor de tudo é se deparar, praticamente a cada esquina, não só com uma joia, mas com verdadeiros tesouros “escondidos” como, por exemplo, uma igreja antiquíssima e cheia de relíquias que enchem nossos olhos com a beleza e a riqueza de seus detalhes. Aliás, falando em tesouros, a dica de ouro é, justamente, garimpar, ou seja, prestar atenção a cada detalhe do percurso. Não economize suas pernas quando tiver vontade de entrar em uma ruela fora de rota, porque este caminho certamente o levará a outro lugar encantador que valerá muitíssimo a pena conhecer. É assim mesmo, o sorriso fica estampado em nossas faces frente às tantas surpresas pelo caminho, e haja espaço na memória do celular ou da câmera para tantas fotos!
Quem já teve a oportunidade de estar em Veneza, por exemplo, sabe como é essa jornada de perder-se por pequenos caminhos e assim captar a essência do lugar visitado. Acontece mais ou menos assim: você está caminhando e, de repente, “pah”, aparece, “do nada”, na sua frente, um monumento da época do Império Romano que mexe com suas estruturas e te faz balançar de emoção…
Um breve panorama histórico de Trastevere.
A palavra Trastevere deriva do latim “Trans Tiberim”, e significa para além do rio Tibre (em português) ou rio Tevere (em italiano). A região se localiza às margens ocidentais deste rio que corta a cidade. Se você optar por visitar a região mais charmosa de Roma, não deixe de ir até o rio Tibre, atravesse uma de suas pontes e aproveite para tirar lindas fotos! A mais bela e “instagramável” ponte é a Ponte Sisto; dela se pode ver o Vaticano e é fácil reconhecê-la por ser caracterizada por um círculo na sua estrutura central, feito originariamente para diminuir a pressão da água contra a ponte em épocas de cheia. No passado, porém, a única ligação entre Trastevere e o resto da cidade era a Ponte Sublícia (uma pequena e singela estrutura de madeira).
O bairro de Trastevere também é conhecido como Rione XIII, ou Rione Trastevere, na medida em que faz parte dos vinte e dois riones (são como regiões) de Roma, uma divisão administrativa da cidade.
Porém, nem sempre foi assim. Nosso pedaço da Itália além do Tibre já pertenceu aos etruscos. Foi apenas no reinado de Rômulo Augusto (último imperador romano do Ocidente) que as coisas começaram a mudar. Isto se deu porque era importante para os romanos o acesso ao rio por ambos os lados, e por isso eles disputaram e conquistaram a região.
Com o passar do tempo, principalmente na época republicana, a região começou a ser habitada por pescadores e marinheiros. Posteriormente, no período imperial, cidadãos mais abastados de Roma começaram a adquirir propriedades em Trastevere, conferindo ao local um ar mais requintado.
Foi mais propriamente com a queda do Império Romano e o advento da Idade Média que nosso delicioso labirinto de becos irregulares foi se desenhando tal como é nos dias atuais. Antigamente, as carruagens enfrentavam sérios problemas para transitarem pelo local e o mesmo problema é hoje enfrentado pelos carros que se aventuram por ali, devido à estreiteza das ruas. Uma curiosidade interessante é que, originariamente, as ruas eram de tijolos, os quais, mais tarde, foram substituídos por paralelepípedos mais resistentes.
Após todos esses períodos históricos, a área se tornou a opção de moradia mais procurada por imigrantes provenientes de várias partes do mundo, principalmente do Oriente Médio (os expats, que é um termo em inglês que refere-se a expatriados). Portanto, ao fim desse mix de acontecimentos, juntamente com a quantidade notável de turistas que circulam pelo local, o resultado que se vê pelas ruas do bairro possui esse aspecto multicultural, e quem habita em Trastevere carrega consigo o título de pertencer aos trasteverini (plural em italiano de trasteverino ou trasteverina).
Na foto abaixo, tirada em setembro de 2022, já ao fim do verão, uma perspetiva das margens do rio Tibre em um dia nublado.
No inverno as folhas das árvores caem por completo, como aparece nas fotos a seguir. É difícil decidir qual dos dois cenários é mais poético… Qual vocês preferem?
A Piazza di Santa Maria e a Basilica di Santa Maria di Trastevere.
O ponto central de Trastevere, e também o mais belo, é a Praça de Santa Maria, a qual possui uma linda fonte datada do século VIII. A fonte é uma das mais antigas da cidade e foi restaurada e reformulada diversas vezes, tendo sido, inclusive, mudada de lugar. Além desta fonte grande e imponente, a qual não é a única do bairro, mas é, sem dúvida, a principal, a beleza desta praça também se dá em razão da Basílica de Santa Maria, devendo à esta igreja a origem de seu nome.
A Basílica de Santa Maria hoje possui o título de basílica menor, e foi fundada no século III, mais ou menos no ano de 220, pelo Papa Calisto I e aprovada pelo imperador da época Alexandre Severo (inicialmente consistia em um pequeno oratório), e o seu nome original era Titulus Callixti. A Basílica foi tomando forma ao longo do tempo e passou por inúmeras reformas até se tornar o que é hoje. As principais e mais definitivas reformas foram realizadas pelos Papas Júlio I e Inocêncio II.
Já na fachada da basílica você irá deparar-se com lindos mosaicos feitos ao final do período da Idade Média (séculos XII e XIII). Um deles, na parte superior, representa Maria amamentando o menino Jesus, em meio a dez mulheres portando lamparinas. Os lindos mosaicos também estão presentes em seu interior e a autoria dos mesmos é atribuída a Pietro Cavallini. Hoje, como seu próprio nome indica, a basílica é considerada uma igreja mariana, isto é, ela é dedicada a Santa Maria.
O interior da Basílica de Santa Maria é realmente lindo, sendo o dourado a sua cor predominante. Possui também uma estátua de Santo Antônio, ao lado esquerdo logo de quem adentra no templo. Seu teto é decorado com lindos afrescos feitos por Domenichino e encomendados por Pio IX. O mármore que reveste a basílica e alguns capitéis jônicos foram retirados das históricas Termas de Caracalla de Roma e também do templo de Ísis.
Não podemos deixar de mencionar a lenda que existe em relação à basílica. Os cristãos acreditam que tenha ocorrido um milagre no local: no ano de 38 a.C. teria começado a jorrar do solo uma substância parecida com óleo mineral, o que teria sido considerado pelos moradores judeus da época como um sinal representativo de uma unção, anunciando a chegada de um Messias. No exato local de onde supostamente jorrou o óleo existe uma placa com a inscrição em latim fons olei (fonte de óleo).
As fotos a seguir mostram um pouco do interior da basílica: A primeira é do altar principal com os mosaicos dourados, e a última do local onde o óleo teria jorrado há mais de dois mil anos atrás. As demais fotos são de alguns dos lindos afrescos e detalhes em mármore. De fato, não dá para subestimar a Basílica de Santa Maria por seu exterior, o qual não chama tanta atenção à uma primeira vista. Porém, quando você a adentra, a experiência é surpreendente!
Fons Olei. Foto: Luiza Andriollo
A Boemia de Trastevere.
Se você está buscando o lado boêmio de Roma, Trastevere é, sem dúvida, uma ótima opção. A partir do cair da noite é muito comum ver, como diria Elis, gente jovem reunida em Trastevere. Um dos principais pontos de encontro é a Piazza di San Calisto (Praça de São Calisto). Principalmente nas noites de verão, uma multidão de pessoas costuma apreciar os artistas locais em Trastevere. É bastante comum você estar passeando pela região ao som de clássicos italianos e internacionais como Beatles e Pink Floyd (é verdadeiramente emocionante).
A boemia de Trastevere não é uma boemia qualquer, ela se mescla e se confunde o tempo todo com a arte, o que faz com que o lugar se torne muito peculiar e único. A noite no coração de Roma continua a inspirar artistas o tempo todo!
Mangiare (ou comer) em Trastevere!
Trastevere é um lugar repleto de restaurantes e bares. Se você busca, por exemplo, um jantar tradicional italiano, recomendamos fazer uma pesquisa prévia ou que você peça indicações das trattorias ou osterias mais antigas do bairro. Muitos desses locais são herdados “de pai para filho” e os preços não são tão altos como podemos supor. Vale muito mais a pena procurar um lugar tradicional, no qual você comerá muito bem, do que comer em um lugar mais “turístico”, os quais costumam ser mais caros e não preservam o real sabor da culinária típica italiana. Em Trastevere, com toda a certeza, você poderá saborear a essência de umas melhores culinárias do mundo!
Se o seu objetivo, entretanto, for fazer um aperitivo (uma espécie do que chamamos de happy hour no Brasil, e que é muito comum em Roma), ou mesmo tomar uma birra (cerveja), existem também ótimas opções pela área, lembrando que o preço de um aperitivo em Trastevere costuma ser bem mais salgado que nas demais regiões da cidade. Se você consome bebidas alcóolicas não deixe de experimentar o famoso spritz (um drink que foi inventado na região de Vêneto no século XVIII e que contém prosecco, água gaseificada, Aperol ou Campari). Em Roma é bastante comum que as pessoas consumam spritz ou outros drinks como o hugo (prosecco, xarope de melissa, soda, menta e limão) durante o dia, inclusive por pessoas com idade mais avançada. Aliás, difícil é saber o que é mais consumido, o spritz ou o caffè…
Algo que também não pode faltar no seu tour gastronômico em Trastevere é saborear um pedaço de pizza (que é vendido assim aos pedaços mesmo, em forma quadrangular) e um típico gelato italiano. Isso deixará a jornada bem mais gostosa!
O que mais tem em Trastevere?
Para quem gosta de visitar lojas e fazer compras, em Trastevere você encontrará pequenos negócios, geralmente com artefatos em couro, lojas de souvenirs, objetos artesanais e feiras de roupas e acessórios com um preço atrativo. Tais lojas fazem parte da história do bairro e mantêm traços herdados de povoados artesãos, pescadores, e pequenos comerciantes que se estabeleceram no local há alguns séculos atrás. Definitivamente, Trastevere não é um lugar onde você encontrará as grandes grifes italianas, mas, certamente, poderá adquirir objetos bem especiais e únicos, se este for o seu desejo.
Nos meses quentes do ano, se optar por descer as escadarias das margens do rio Tibre, existe uma feira muito interessante na qual você encontrará desde artesanatos e roupas até opções para fazer uma refeição com uma belíssima vista.
Para os amantes de futebol, não podemos deixar de citar o time de futebol de Trastevere, o Trastevere Calcio, fundado em 1909. O time é considerado pequeno, uma equipe de bairro que disputa divisões regionais. Apesar disso, é bem comum encontrar pelas ruelas da cidade objetos com o escudo do Trastevere Calcio, o qual foi inspirado no brasão do próprio bairro e contém um leão de perfil com a língua para fora, nas cores branco e bordô. Que tal levar uma lembrancinha do Trastevere Calcio para alguém querido que mora no Brasil e que é fã de futebol?
Por outro lado, se você prefere um tour mais artístico, sugerimos que procure pela Villa Farnesina (museu de arte que contém obras renascentistas, inclusive de Raffaello e demais expoentes do período) e pela Galleria Corsini (ou Galleria Nazionale di Arte Antica), locais visitados principalmente pelos amantes da História da Arte. Na Villa Farnesina, em meio a tantas obras incríveis, preste uma atenção especial à Sala das Perspectivas, no andar superior do prédio, a qual nos presenteia com uma interessante ilusão de ótica criada por afrescos que retratam a cidade por meio de colunas de mármore. Já na Galleria Corsini você encontrará obras de Caravaggio, Beato Angelico, Luca Giordano, dentre outros.
O Gianicolo e seus arredores.
Se você ainda tiver energia depois de caminhar por Trastevere, pode aproveitar o mesmo dia para visitar os seus arredores, como o Gianicolo (em portugues Janículo), o qual possui, em seu ponto mais alto da colina, uma linda vista da cidade e um monumento em homenagem a Giuseppe Garibaldi. Trata-se de uma estátua equestre em bronze com pedestal de mármore feita em 1895, em agradecimento aos feitos do herói dos dois mundos em prol da unificação da Itália e da República Italiana.
Quando estiver admirando a vista panorâmica da cidade do alto do Janículo (para subir a pé é um pouco cansativo, você pode pegar um ônibus ou ir de carro), não deixe de atravessar a Piazza Garibaldi (Praça Garibaldi) até o outro lado para avistar também a cúpula da Basílica de São Pedro. No Janículo também encontram-se, sob sua estátua equestre, os restos mortais de Anita Garibaldi, a qual lutou, ao lado de seu marido Giuseppe, pela unificação italiana e também na Revolução Farroupilha no sul do Brasil. Enfim, são tantos lugares históricos que circundam Trastevere que teremos que deixá-los para os próximos artigos (fiquem de olho para não perderem nenhuma dica!).
Apenas para citar mais alguns lugares imperdíveis pelos arredores, não perca a oportunidade de conhecer também:
» O Giardino degli Aranci (Jardim das Laranjas), o qual tem uma vista linda do rio Tibre.
» O Campo dei Fiori (Campo das Flores), no qual você encontrará uma feira de especiarias, uma estátua do filósofo italiano Giordano Bruno e, é claro, muitas flores que podem ser compradas ali mesmo.
» A Fontana dell’Acqua Paola (Fonte de Água Paola), a qual foi a primeira grande fonte da margem esquerda do rio Tibre, construída em 1.612, e seu nome homenageia o Papa Paulo V. Seu mármore foi retirado do templo romano de Minerva e disposto em cinco arcos em forma de um portão. Em seu topo encontra-se uma tiara papal e chaves que simbolizam a entrada dos céus, acima do brasão da família Borghese, carregados por anjos. Isto seria uma homenagem ao Papa Paulo V por ter levado água potável aos moradores do Janículo. Esta fonte é responsável por alimentar a fonte da Praça de Santa Maria, que citamos anteriormente. Historiadores relatam que o design da Fonte de Água Paola teria inspirado, em alguns aspectos, a Fontana de Trevi.
» A Chiesa di San Pietro in Montorio (Igreja de São Pedro em Montorio). Fiéis acreditam que teria sido neste local que São Pedro foi martirizado e crucificado, de cabeça para baixo. No seu pátio encontra-se o Tempietto, um pequeno monumento composto por colunas toscanas, um entablamento dórico e uma cúpula, considerado uma importante obra da arquitetura do Alto Renascimento italiano. No interior da igreja você também encontrará várias obras renascentistas.
» A Bocca della Verità (Boca da Verdade): trata-se de uma famosa escultura em mármore no formato redondo e sobre um capitel, com uma face que lembra um rosto masculino com barbas e um bigode. A boca está entreaberta e contém um espaço onde cabe uma mão humana. Grande parte dos romanos acredita que ela representa o antigo deus fluvial do rio Tibre. A lenda da Boca da Verdade é de que a estátua é uma detectora de mentiras, ou seja, se a pessoa colocar sua mão dentro do orifício da boca e estiver mentindo, a boca se fecha entregando o mentiroso ou mentirosa. A Boca da Verdade está localizada no exterior de uma das paredes da Igreja de Santa Maria in Cosmedin, próxima à Trastevere.
Colecione o seu próprio tesouro!
Retomando o que falamos no início, ocorre que, apesar da Itália não ser um país tão grande, os romanos possuem um modo bem peculiar de falar o seu idioma oficial. Aprender esses ditos populares como o “Mai’na goia” é um modo bastante divertido de vivenciar a experiencia de se estar em Roma e, especialmente, em Trastevere.
Desejamos que você encontre muitas “joias” e alegrias pelo caminho em Trastevere para compor o seu acervo pessoal! 😉
Grande abraço e até o próximo post!
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