
Por Yuri Borges Loyola
Foto de capa: Viacheslav Lopatin / 123RF
Mais que por seus belos edifícios e fascinante Carnaval, Veneza é conhecida em todo o mundo principalmente pelos seus canais percorridos por gôndolas e pela maré alta, que com frequência toma as praças e ruas da cidade. Ao longo dos séculos sua população teve que se adaptar com criatividade à presença invasiva da água: conheça um pouco a história dessa relação, não sempre fácil, entre Veneza e o mar.

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Veneza, um pouco de história de sua relação com as águas
Antes de tudo, Veneza é desde sempre uma cidade em constante transformação. Na Idade Média, por exemplo, sua fisionomia era bem diferente daquela que vemos hoje. Quando a população da região, para escapar dos ataques de povos invasores, decidiu se refugiar às margens do Canal Grande e fundar aquilo que viria a ser Veneza, o nível da água não era tão alto como hoje em dia. Naquela época a maré não atingia ainda os edifícios e havia pequenas praias às margens do rio, onde os Venezianos organizavam feiras e podiam praticar o comércio.

Mas com o passar do tempo o nível da água na laguna foi subindo e subindo, submergindo aos poucos as praias e margens dos rios e ameaçando invadir até mesmo as casas. No entanto, o povo de Veneza, que vivia em simbiose há séculos com as águas, ao invés de fundar um novo núcleo mais seguro nas proximidades, decidiu se adequar com criatividade à presença do mar. E assim aos poucos surgia a Veneza que conhecemos hoje, uma inteira cidade sobre as águas.

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A reconstrução de Veneza
A reconstrução da cidade seguiu um método de certa forma simples. Primeiramente, fincavam-se em profundidade no terreno enormes estacas de madeira que afundavam completamente sob a lama, uma do lado da outra, formando uma espécie de paliçada embaixo d’água. A madeira, embora enfiada no lodo da laguna, não apodrece, pois a falta de oxigênio impede a proliferação de bactérias. Além disso, a água salgada e lamacenta do mar preenche as brechas da madeira, tornando-a assim com o tempo ainda mais robusta e resistente.

Em seguida, sobre essa paliçada subaquática eram entrelaçados horizontalmente longos postes de madeira, que deviam servir de apoio à base em pedra das casas. Formava-se assim sobre a paliçada uma espécie de jangada de madeira gigante, sobre a qual em seguida se erguiam os edifícios. É como se, de certa forma, toda a cidade de Veneza boiasse sobre enormes jangadas de madeira escondidas embaixo d’água!

Finalmente, sobre essa camada subaquática de madeira era apoiada a base em pedra dos edifícios. Para tal, os venezianos escolheram a Pedra de Ístria, um tipo de pedra compacto e impermeável que não absorve a água do mar, a qual banha constantemente a parte baixa das casas da cidade. Em cima dessa fundação em pedra, enfim, eram construídas as casas e os edifícios. Essa forma de edificar foi tão eficaz que os alicerces de madeira de Veneza, embora tenham mais de 500 anos, ainda hoje não demonstram fraqueza ou sinal de desgaste!

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Veneza e o fenômeno acqua alta
Mas a história não termina aqui, pelo contrário. O nível da água desde então continua a subir: pouco a pouco, mas incessantemente todos anos. Visto que os alicerces já estão postos e os edifícios construídos, por enquanto há pouco o que se fazer além de se habituar à intrusão das águas. Principalmente no outono e na primavera é comum, por causa dos ventos, que a maré suba, alagando muitas partes da cidade: é o fenômeno da acqua alta, que diverte os turistas e ao qual os venezianos estão mais do que acostumados. Em dias como estes a prefeitura coloca plataformas elevadas pelas ruas de Veneza, criando uma espécie de passarela que permite às pessoas caminhar pela cidade. Já os venezianos muitas vezes, habituados como são à acqua alta, simplesmente vestem suas longas galochas e enfrentam a água para evitar as tumultuadas passarelas.

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Mas os desafios para o futuro que aguardam Veneza e os venezianos não são poucos. A expectativa é que o nível da água continue a subir incessantemente, talvez até mesmo de um metro nos próximos cem anos, o que exigiria uma re-elaboração total da urbanística da cidade. Alguns acreditam que será necessário barrar a entrada da água durante as marés altas; outros, mais drásticos, especulam que será preciso isolar completamente a cidade do mar, caso contrário essa poderá ser submersa pela laguna. Nós, que somos mais otimistas, acreditamos que, quaisquer que sejam as condições no futuro, o povo de Veneza, criativo e engenhoso na sua longa relação com o mar, saberá dar conta mais uma vez de manter viva, bela e ditosa a extraordinária cidade que herdaram de seus antepassados.
