Raffaello Sanzio é um dos maiores gênios artísticos da humanidade. O “divino pintor”, como ele era chamado pelos contemporâneos, não só interpretou melhor do que ninguém o conceito de beleza renascentista, mas definiu o próprio cânone do nosso ideal do belo. A união arte-natureza em Raffaello atinge picos altíssimos e a sua obra é reveladora do senso de harmonia que permeia o universo.
A trajetória artística do grande pintor urbinate, portanto, se manifesta numa constante e inexaurível tensão à procura do senso definitivo de todas as coisas. Raffaello Sanzio encarna uma visão profundamente humanista da arte, interpretada como meio de revelação, junto com a ciência, a filosofia e a teologia, da verdade última sobre o ser humano.
Raffaello sempre conseguiu realizar o que os outros apenas almejavam fazer.
W. Goethe
Raffaello, o novo Cristo
Às três da manhã do dia 6 de abril de 1520 morria Raffaello Sanzio, um dos maiores gênios da arte de todos os tempos. O falecimento de Raffaello foi lembrado pelos mais importantes homens de cultura da época como uma tragédia sem precedentes, quase uma premonição de tempos sombrios, transmitindo-nos a visão comum de um artista considerado “divino” ao ponto de ser comparado, quando ainda era vivo, a um novo Cristo.
Pandolfo Pico della Mirandola chegou a relatar que a morte de Raffaello foi acompanhada por sinais parecidos aos que aconteceram quando Jesus morreu. Em uma carta destinada a Isabella d’Este ele escreve que houve uma rachadura no Palácio do Vaticano, provavelmente por conta de um leve terremoto, e que o Papa Leão X, por medo, se mudou para os antigos apartamentos do Papa Inocêncio.
Como Jesus, Raffaello morreu na sexta-feira santa e, além disso, a data de sua partida coincidiu com seu nascimento, 37 anos antes, em 6 de abril de 1483 (embora essa data não seja certa). Essas circunstâncias alimentaram o culto do “divino pintor”, o apelido que os contemporâneos lhe haviam atribuído.
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Na célebre “Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos” – uma coletânea de biografias dos maiores artistas da Idade Média e da Renascença – Giorgio Vasari (1511-1574), arquiteto e historiador da arte, escreve:
Em Raffaello ressaltavam as mais raras virtudes da alma, acompanhadas de tamanha graça, estudo, beleza, modéstia e ótimos costumes ao ponto de cobrir qualquer vício por quanto deplorável…. Portanto podemos sem dúvida afirmar que as pessoas que possuem tantos raros dons, como no caso de Raffaello de Urbino, não sejam simples homens, mas, se for lícito dizer assim, deuses mortais”.
Um novo ideal de beleza
Em 2020 a Itália comemorou as “Raffaelliadi”, ou seja, o aniversário de 500 anos da morte dessa lendária personalidade artística, e aproveitamos para redescobrir a importância do legado que o Raffaello Sanzio nos deixou.
Raffaello foi o intérprete de um ideal de beleza clássica que influenciou o gosto das gerações posteriores, até se tornar o cânone do nosso ideal de beleza, que não distingue mais, a partir dele, entre o belo natural e o belo artístico. Ele eliminou esse diafragma, numa concepção da arte como imitação da natureza, um conceito que em Raffaello vai muito além da imitação da aparência das coisas. A união arte-natureza representa um ideal que implica com o equilíbrio, o senso de harmonia, a solenidade calma e serena que permeia o universo, como o próprio artista escreve:
“o pintor tem a obrigação de reproduzir as coisas não como a natureza as faz, mas como ela deveria fazê-las”.
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A formação de Raffaello e a Deposição Baglioni-Borghese
Raffaello foi o primeiro e único filho de Giovanni Santi (excelente pintor) e Magia Ciarla. O sobrenome “Sanzio” é, de fato, apenas uma das variações possíveis de “Santi”, derivado do latim “Sancti”, com o qual Raffaello costumava assinar suas obras.
A formação do jovem artista foi fortemente influenciada pelo contexto extremamente propício de Urbino, sua cidade natal, que na época era um centro artístico de enorme importância, que irradiava os ideais do Renascimento na Itália e na Europa. Em Urbino Raffaello teve acesso às obras de artistas como Piero della Francesca, Luciano Laurana, Francesco di Giorgio Martini e outros, que embelezavam o Palácio Ducal construído por vontade do Duque Frederico da Montefeltro, um dos mais iluminados senhores e mecenas da época.
Decisiva, no entanto, foi a sua relação com o pintor Perugino, seu grande mestre.
Com apenas 17 anos, Raffaello é já um mestre da arte e realiza o espetacular “Casamento da Virgem”, hoje abrigado na Pinacoteca Brera, em Milão.
A sua obra-prima juvenil virá em 1507, durante o seu período florentino, com a “Deposição”, um quadro pintado para a viúva Baglioni e que hoje se encontra na Galleria Borghese. É um dos sujeitos mais dramáticos pintados por Raffaello, acostumado com temáticas mais serenas. O resultado é uma obra realmente excepcional, que evidencia toda a genialidade do jovem artista. Os pintores anteriores e contemporâneos a ele, quando empenhados na representação desse momento dramático da história de Cristo, sempre haviam escolhido a deposição da cruz ou o enterro; Raffaello, no entanto, decide representar um momento “intermediário”, o deslocamento do corpo sem vida de Jesus.
O encontro com Michelangelo e Leonardo em Florença
Em Florença Raffaello teve a oportunidade de se confrontar com dois .grandes artistas, os quais, junto com ele, formariam a tríade do gênio renascentista italiano: Michelangelo e Leonardo. Ele aprendeu do primeiro a dramaticidade dos corpos em movimento e o uso das cores puras e iridescentes; e do segundo, a sutileza e o mistério da alma humana que se reflete na luz. Raffaello escolheu uma terceira via, uma síntese perfeita que já se manifesta totalmente na Deposição Baglioni-Borghese. O artista urbinate dinamiza e revoluciona o tema da deposição, antecipando o equilíbrio perfeito entre a pintura da natureza e da história – entre o tom elegíaco e o épico – que se manifestará completamente no período da maturidade, quando afrescará o apartamento do Papa Júlio II.
Revolucionando a estaticismo clássico do tema da deposição, Raffaello “inventa” o dinamismo do personagem central: um jovem que, com uma cadência composta, diríamos clássica, move a ação da direita para a esquerda, desde o desmaio de Maria entre as mulheres piedosas debaixo da cruz até o recebimento do corpo de Cristo pelo trio composto por José de Arimatéia, São João e Nicodemos, que arrastam Jesus em direção ao sepulcro. No centro, Madalena pega a mão do Mestre enquanto acaricia suas belas feições. O movimento é dado pelo arqueamento do perfil do jovem cuja perna esquerda, bem plantada verticalmente no chão, marca o ponto de apoio do equilíbrio estático.
Esse jovem na realidade representa Grifonetto, o filho de Atalanta Baglioni, que havia encomendado a obra para preservar a memória do filho falecido. Ele é retratado como um moço com perfil bonito e os lábios carnudos e vermelhos de um adolescente. O pescoço, os braços fortes e bem formados, os calçados elegantes e a estatura superior à de qualquer outro personagem, fazem dele o protagonista do grupo. Seu esforço físico enfatiza a concretude carnal do corpo de Cristo e a tragédia humana de sua morte.
A serviço dos Papas
O divisor de águas da carreira artística de Raffaello é a convocação, em 1509, por parte do Papa Júlio II, que pretendia renovar a cidade de Roma graças à contribuição de artistas e arquitetos como Bramante e Michelangelo. A primeira missão de Raffaello em Roma é a decoração das salas do apartamento privado do próprio Pontífice, que hoje fazem parte do complexo dos Museus Vaticanos e são conhecidas justamente como as “Salas de Raffaello”. O afresco mais célebre desse maravilhoso conjunto é sem dúvida a “Escola de Atenas”.
A Escola de Atenas
Dentro de uma grandiosa arquitetura renascentista, inspirada no projeto de Bramante para a renovação da Basílica de São Pedro, Raffaello retrata os filósofos mais famosos da antiguidade. No total, contam-se 58 entre filósofos e estudiosos, que, no entanto, têm os semblantes de artistas e intelectuais contemporâneos do próprio Raffaello, a exaltar a ligação entre a antiguidade clássica e o movimento renascentista.
No centro da cena encontra-se Platão – com os semblantes de Leonardo da Vinci – que aponta o dedo para o céu e segura na mão o livro Timeo; ao seu lado, Aristóteles com a Ética. Pitágoras é retratado em primeiro plano no ato de explicar o diatessarão; Diógenes está deitado na escada, enquanto o filósofo pessimista Heráclito, que tem os traços de Michelangelo (que na época estava pintando a Capela Sistina), encontra-se apoiado em um bloco de mármore, enquanto escreve em uma folha. Sócrates, em um vestido verde-garrafa, parece incitar o diálogo com o pequeno grupo de pessoas à sua frente. À direita reconhecemos Euclides que ensina geometria aos seus alunos; Zoroastro com o globo celeste; Ptolomeu com o globo terrestre; e, finalmente, na extrema direita, há Apeles, que veste um chapéu e é o autorretrato do próprio Raffaello.
O afresco representa a faculdade da alma de conhecer a verdade, isto é, por meio da ciência e da filosofia; e se complementa com o outro grande afresco que fica em frente a ele, sempre de Raffaello: “A disputa do Sacramento”, que mostra como o homem chega à verdade por meio da fé e da teologia. Toda a história do pensamento filosófico e científico, portanto, na visão do Raffaello conduz à Verdade revelada pelo Cristianismo, da qual a Igreja é a suprema guardiã. Uma visão que subentende a ideia de “philosophia ancilla theologiae” da época, ou seja: a filosofia à serviço da revelação cristã.
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Raffaello Sanzio – o primeiro empresário do ramo cultural
Juntamente com a decoração do apartamento papal, Raffaello recebe uma série de comissões intermináveis por parte do próprio Papa e de personagens ligados à sua corte.
Em seguida, o artista urbinate é nomeado Prefeito das antiguidades romanas, ou seja, superintendente de Roma e começa, primeiro na história, a cuidar da proteção e conservação de obras e monumentos antigos da capital, elaborando os princípios que se tornarão as bases teóricas da preservação e valorização do patrimônio cultural de uma nação.
Devido ao excesso de trabalho, ele organiza a sua “bottega”, ou seja, o seu laboratório, se tornando o primeiro empreendedor, no sentido moderno, no ramo cultural: monta e lidera uma equipe formada por escultores, arquitetos e artesãos de todos os tipos, para satisfazer qualquer solicitação e produzir um número indefinido de obras.
A morte repentina de Raffaello Sanzio
Como aconteceu que a trajetória luminosa desse astro que tanto fez pela humanidade e muito mais iria fazer, foi interrompida tão repentinamente e precocemente? Segundo Giorgio Vasari, Raffaello morreu após dias de doença que começou com uma febre contínua e aguda, a qual foi causada por excessos amorosos (essa expressão, muito provavelmente, se referia à uma doença venérea). Ele relata que Raffaello “era uma pessoa muito amorosa, apaixonada por mulheres e prazeres carnais … Ele tinha uma vida sexual muito desregulada… depois de ter exagerado mais do que o normal, ele voltou para casa com febre… “.
Há motivos, no entanto, para acreditar que a verdade seja outra. Alguns estudiosos acreditam que Raffaello, que se encontrava no auge da sua produção artística, lisonjeado pelo Papa e pela aristocracia romana, empresário de sucesso, possa ter morrido não em decorrência de seus supostos “excessos de amor”, mas sim pela maldade de seus adversários.
Vale considerar, entre outras coisas, que alguns meses antes de sua morte Raffaello havia retratado uma jovem nua no ato de cobrir os seios com um véu transparente. Segundo seus biógrafos, esse quadro, conhecido como “La Fornarina”, retrata a musa inspiradora do artista: Margherita Luti, filha de um padeiro senês, que por muito tempo sugestionou a imaginação coletiva da época e foi considerada o único amor do pintor. Após a morte do Raffaello, inclusive, Margherita se retirou em um convento. Aí surge a dúvida: é verdade que o “divino pintor” vivia num estado de dissolução moral (o que contradiz, inclusive, a descrição quase sobrenatural que o próprio Vasari faz na biografia dele), ou, pelo contrário, ele se manteve fiel à sua musa, com a qual vivia uma intensa história de amor?
As causas da morte súbita relatadas nas crônicas da época não são claras e a história pode ser diferente da veiculada por Vasari. Alguns historiadores da arte relatam como o clima em Roma, naquela época, era extremamente competitivo entre os artistas. Basta pensar que Baldassarre Peruzzi, por exemplo, arquiteto da Basílica de São Pedro, morreu envenenado (1536).
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Quem eram as pessoas que poderiam desejar a morte de Raffaello? Uma hipótese sugestiva conduz a levantar o nome do pintor Sebastiano del Piombo, que havia chegado a Roma de Veneza, seguindo o rico banqueiro senês Agostino Chigi, o qual na cidade dos Papas possuía uma suntuosa mansão.
O rico banqueiro incumbiu os maiores artistas da época, entre eles justamente Raffaello e Sebastiano del Piombo, da decoração pictórica de seu majestoso edifício. Os dois competiram na Sala Galatea, no térreo. Quatro anos depois, em 1516, o cardeal Giulio de’ Medici (o futuro Papa Clemente VII) encomendou duas pinturas aos mesmos artistas: para Raffaello, a “Transfiguração” (hoje nos Museus do Vaticano); e para Sebastiano, a “Ressurreição de Lázaro” (atualmente abrigada na Galeria Nacional de Londres). A disputa entre os dois, portanto, recomeçou.
Existe uma correspondência estreita entre Michelangelo e seu amigo Leonardo Sellaio na qual se deduz que a competição entre os dois artistas foi particularmente acirrada e durou vários anos. E, enquanto Sebastiano del Piombo, em 1519, apresentou a sua pintura, Raffaello não conseguiu terminá-la, devido à sua morte repentina.
Raffaello foi enterrado, por vontade própria, no Panteão, em Roma. No túmulo dele foi gravado este epitáfio, composto em latim pelo literato humanista poeta Pietro Bembo:
“Ille hic est Raphael timuit quo sospite vinci, rerum magna parens et moriente mori” (“Aqui jaz o famoso Raffaello: quando vivia, a natureza teve medo de ser superada; quando morreu, de morrer com ele”).
Em 1722 o corpo de Raffaello foi exumado, quase intacto. Se ele tivesse sido envenenado, o arsênico poderia ter preservado o corpo da decomposição. Mas é claro que são apenas suposições…
Foto de capa: Autorretrato de Raffaello. Autoria: Raffaello Sanzio. Data: 1504-1506. Abrigado na Galleria degli Uffizi, em Florença. Imagem: Commons Wikimedia (domínio público).