Florença, a Capital da Região Toscana, certamente dispensa apresentações. Riquíssima tanto em seus aspectos históricos quanto culturais e artísticos, é uma das cidades mais famosas não apenas da Itália, como de todo o mundo. Destino inclusive sempre incluído em grande parte dos roteiros para a Itália, mesmo para o turismo de grande porte.
Longe de nós abrigarmos a intenção de sintetizar em nosso roteiro toda a história de Florença, o que se transformaria em algo como a tentativa de abraçar o oceano. Pretendemos aqui, contudo, fazer aflorar que esta trajetória de Firenze no mundo se faça por meio de suas principais construções religiosas.
Através dos percursos construtivos de seu Duomo, a Catedral de Santa Maria del Fiore; da Basilica di Santa Croce e da Chiesa di Santa Maria Novella, teceremos metonimicamente a própria constituição histórica de Florença. Afinal, a Itália é riquíssima nessas sínteses históricas que perpassam seus edifícios, tamanha sua habilidade artística e arquitetônica, desde a Antiguidade; assim como seu esforço contemporâneo na conservação destes monumentos para a posteridade. História e arquitetura sempre se misturam, ganhando no Velho País praticamente a qualidade de sinônimos, ou ao menos a qualidade concreta entre a materialidade e seu percurso humano.
Neste sentido, oferecemos ao nosso leitor uma oportunidade de caminhar brevemente sobre a história de três das mais importantes construções religiosas não apenas de Florença, como de toda a Itália, sem nos ater aos aspectos arquitetônicos.
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Catedral Santa Maria del Fiore
A Catedral Metropolitana de Santa Maria del Fiore é o Duomo de Florença, ou seja, sua Catedral principal. O projeto de sua construção data do século XIII, sendo finalizado do ponto de vista estrutural apenas no século XV, como era costume construtivo na Baixa Idade Média, dada a alta complexidade de seu desenho original. É certamente o maior símbolo imagético da cidade, oferecendo imediata identificação entre sua arquitetura e a paisagem florentina.
Quando finalmente edificada, era a maior igreja do mundo, sendo hoje a terceira em dimensão de toda a Europa, depois da Catedral de São Pedro, em Roma e da de São Paulo, em Londres. Possui a maior cúpula já construída em alvenaria, assim como a maior superfície existente decorada com afrescos, ocupando uma área de cerca de 3600 m², sob o projeto quinhentista do famosíssimo arquiteto Giorgio Vasari e Federico Zuccari. Sua fachada, redesenhada já na contemporaneidade do século XIX em mármore policromado, é assinada por Emilio de Fabris, sendo um dos exemplos mais bem-acabados do neogótico italiano.
Da igreja medieval Santa Reparata ao grande Duomo
Desde a Idade Média, Florença edifica seus principais centros religiosos a Nordeste do antigo centro Romano, próximas, porém do lado externo, das antigas muralhas da cidade.
Uma de suas principais edificações religiosas, mesmo não sendo a única, é a igreja de Santa Reparata, erguida ao longo do século VII. A igreja medieval se torna importante centro religioso, principalmente ao longo dos séculos XIII e XIV, quando Florença conhece franca expansão urbana, sendo uma das cidades mais importantes do comércio em processo de mundialização a partir do Mar Mediterrâneo. Diversos projetos arquitetônicos e urbanísticos, assim, são iniciados na cidade, desde a reforma da Piazza della Signoria, até o ousado plano de ampliação dos muros que cercavam a território urbano.
Logo, a modesta igreja medieval não é mais capaz de suportar o crescente número de fiéis, fruto do crescimento populacional florentino oriundo da relevância econômica, o que redundou em seu projeto de expansão, a partir do século XII, como já mencionamos. Mais do que uma estrutura meramente religiosa, o novo Duomo representou uma forma de superação da grandiosidade construtiva das rivais de Florença, no tabuleiro de xadrez e jogo de forças que era a Região da Toscana no período do Renascimento, especialmente Pisa e Siena. Sendo, deste modo, além de Catedral católica, um símbolo de poder e dominação.
Existem atualmente grandes questionamentos históricos sobre a autoria do desenho inicial de substituição da igreja medieval pelo Duomo atual. Todavia, é bastante provável que o escolhido tenha sido o mesmo arquiteto que seria o realizador da ampliação dos muros da cidade, assim como um dos mestres responsáveis pela reforma da Pizza della Signoria e pela edificação da Basilica di Santa Croce, Arnolfo di Cambio.
A nova Catedral seria consideravelmente maior do que a igreja original, e as fundações foram cavadas e as paredes de sustentação construídas de modo a manter Santa Reparata em pleno funcionamento e recepção de seus milhares de fiéis, em um projeto de engenharia que chama a atenção por sua complexidade, principalmente para o contexto histórico da época.
Já no início do século XIV, com a morte de Arnolfo, o projeto acaba por passar por longo período de paralização, ficando sem qualquer alteração por praticamente trinta anos, até a retomada das obras em 1330, após descoberta de relíquias importantíssimas sob o piso da velha igreja medieval.
O campanário de Giotto
O novo projeto, que foca na construção do Campanário e da estrutura principal da nave da Basílica, foi assinado por uma parceria entre Giotto (que morre três anos depois de assumir as obras) e Andrea Pisano, o que leva a uma nova paralização em 1348, pois este morreria vítima da gravíssima Peste Negra.
Apenas em 1364, após a formação de um comitê com vários dos mais importantes arquitetos da época, o projeto pôde ser continuado, agora sob a assinatura de Giovanni di Lapo Ghini, que decide aumentar o diâmetro da cúpula de Pisano.
A Cúpula de Brunelleschi
Já no século XV, marcando as dificuldades construtivas típicas do período, o que de fato estendia em muito o tempo da execução de uma obra tão ousada e grandiosa como a do Duomo de Florença, restava ainda a execução da Cúpula da Catedral, centro nevrálgico de toda a estrutura arquitetônica do projeto original.
Mais uma vez, o desafio era o de superar as obras religiosas vizinhas, dando à cúpula a perspectiva de se tornar a maior estrutura abobadada de toda a Região, com mais de 60 metros. Após intensos debates à época e o estabelecimento de concurso público sem vencedores, o projeto acaba por ser entregue a Filippo Brunelleschi, por seu projeto de cúpula sem apoio central oferecido à Chiesa di San Jacopo Soprarno.
O seu desafio era claríssimo: como, afinal, levantar uma estrutura em abobada, daquela altura, sem que ela sofresse um completo colapso. A solução de Brunelleschi, inovadora para sua época, foi a de instalar sob a cúpula uma estrutura em concha, autoportante, sustentada por uma complexa coleção de guindastes e roldanas que, além de suportar o peso da abóbada, tornaria possível levar para cima tamanho peso em materiais de construção. Deste modo, o arquiteto, além de formar um dos pontos turísticos mais famosos do mundo, tornou-se para o seu próprio período histórico um exemplo de superação e de grandiosidade, sendo uma das primeiras afirmações da capacidade e potência arquitetônica de todo o Renascimento.
A consagração do templo finalmente foi conduzida, e em março de 1436 o Papa Eugênio IV inaugura um dos mais importantes sítios religiosos do mundo, além de um dos mais impressionantes cartões postais da história da Itália.
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Basílica de Santa Croce
A Basílica de Santa Cruz, localizada na Praça florentina de mesmo nome, é um dos maiores exemplos da arquitetura Gótica não apenas na Itália, como em toda a Europa, sendo também uma de suas maiores igrejas franciscanas.
A Basílica é o local da sepultura de diversos dos nomes mais importantes do país, como Michelangelo, Galileu Galilei, Nicolau Maquiavel, entre diversos outros. É também um dos símbolos históricos mais prestigiados do Velho País, tendo sido congregação e espécie de ponto de encontro para os mais renomados artistas do Renascimento, oferecendo ao lugar uma forte identidade com a cultura italiana da Baixa Idade Média e do florescimento riquíssimo do movimento renascentista posterior.
No início do século XIII, São Francisco de Assis, que daria origem à famosíssima Ordem dos Franciscanos, existente até os dias atuais, passa por Florença, decidindo, ao lado de alguns de seus seguidores à época, edificar em uma área externa aos muros da cidade, numa pequena ilha formada por dois braços do Rio Arno, um oratório dedicado aos frades católicos florentinos.
A partir da segunda metade do mesmo século, tendo em vista o franco crescimento de Florença, como já expomos anteriormente, decidiu-se ampliar o humilde oratório, para que fosse capaz de receber mais fiéis e estabelecer por ali um edifício adequado para a Ordem dos Franciscanos, que também se tornava cada vez maior.
Os projetos iniciais de ampliação foram recebidos com certa tensão entre os frades seguidores de São Francisco, posto que alguns deles desejavam manter a singeleza do pequeno templo religioso, seguindo à risca as orientações de seu mestre religioso, que sempre pautara pela negação de qualquer tipo de ostentação das aparências, assim como do dispêndio financeiro para confortos acima dos necessários para a pregação da palavra de Deus e a dedicação aos serviços religiosos. Apesar dos protestos, ao final do século XIII a Santa Sé decide erigir um novo templo, completamente do zero, em um desenho grandioso que provavelmente partiu do arquiteto Arnolfo di Cambio, o mesmo já responsável por diversas obras de expansão em Florença, como já discutimos acima.
O oratório permaneceu em uso pelos seus fiéis e membros da Ordem Franciscana por tanto tempo quanto foi possível, dentro do estilo construtivo de Arnolfo, que costumava iniciar suas obras pelas fundações em torno dos edifícios preexistentes. Tal projeto pôde ser observado mais de perto em seus restos materiais e arqueológicos no ano de 1966, quando uma enorme inundação abalou as estruturas do piso da Basílica, revelando suas bases medievais. Apesar do trágico, e do imenso dispêndio financeiro para sua reconstrução, a inundação acabou por mostrar aos nossos contemporâneos um pouco da história arquitetônica de Florença, em um evento que marca a história justamente por seu caráter ambíguo. Muitas vezes, é a partir de um acontecimento traumático que demonstramos ao mundo não apenas o lugar comum de nossa superação, como os segredos de nossa trajetória histórica. Com Florença também foi assim.
A obra de reconstrução do templo religioso, de simples Oratório a Basílica de Santa Cruz, foi financiada pela própria República de Florença, demonstrando a associação indissolúvel entre Igreja e Estado no período medieval, como já sabemos de cor. Obras que acabaram por sofrer duro golpe ao longo do século XIV, seja pela morte de Arnolfo di Cambio, em 1302; seja pela passagem devastadora da Peste Negra e os sucessivos acidentes naturais pelos quais passou a cidade, com intensas e paralisantes inundações. Tais fatos contribuem, inclusive, para a manutenção da dúvida entre a maior parte dos historiadores no que se refere à data de conclusão da grande obra franciscana, que giraria em torno de 1385, ou em algum outro momento já ao final do século. Sua consagração, já com a inclusão do convento franciscano, da sacristia, dos dormitórios, enfermaria, refeitório e biblioteca, todavia, aconteceria somente na primeira metade do século XV, sob o papado de Eugênio IV.
A partir de sua consagração, a Basílica se torna grande centro religioso em Florença, não se limitando apenas aos cultos cotidianos da Igreja Católica, como também ponto de encontro dos mais renomados artistas da época, configurando-se como verdadeira oficina artística do Renascimento.
Ao longo de sua história, chega a sofrer com outros eventos trágicos, inundada a ponto da interdição no século XVI, por exemplo, necessitando de reformas estruturais, estas assinadas pelo famosíssimo arquiteto italiano Vasari, que também contribuíra com o Duomo da cidade.
Ao longo do século XIX, séculos depois de sua sublime edificação, como parte de um itinerário histórico de modificações arquitetônicas e simbólicas, a Basílica acaba por ser utilizada como uma espécie de panteão das glórias italianas no período de sua unificação territorial. Este tempo histórico em específico, na segunda metade do século XIX, tentava resgatar na Itália um sentimento nacionalista agregador, que encontra em Santa Croce o lugar perfeito, ao recuperar sua origem franciscana humilde e sua função de patrona das artes e ofícios dos grandes mestres do Renascimento.
Neste mesmo período, todo o pátio do claustro de Santa Croce, assim como seu terreno dos arredores é relembrado e reutilizado como grande mausoléu dos mais importantes “heróis” da pátria italiana, ali enterrados ao longo de sua longa jornada histórica, oferecendo ao templo mais de 270 tumbas.
Conforme mencionamos anteriormente, a Basílica passa por um novo procedimento restaurador depois da severa inundação de 1966, quando boa parte de seu piso, ou seja, sua estrutura, colapsa em um mar de lama e desfiguração de diversas de suas obras artísticas mais importantes. Acaba por revelar sua essência, tanto por transbordar suas origens franciscanas anteriores às primeiras obras de expansão, quanto por demonstrar sua capacidade de recuperação e restauração, renascendo da mesma lama que a consumiu.
Basílica de Santa Maria Novella
A Basílica de Santa Maria Novella, também localizada em Praça de mesmo nome, está para os Dominicanos de Florença assim como a Basílica de Santa Cruz está para os seus Franciscanos. A primeira ideia de sua construção também é datada do século XIII, quando da chegada dos primeiros dominicanos à região, vindos de Bologna, enviados pelo próprio São Domingos. O território da Basílica ainda era bastante rural, praticamente dominado pela produção agrícola, fora, inclusive, dos muros da cidade. Por aqui, tomaram posse de uma antiga igreja, a Chiesa Santa Maria delle Vigne (ou Santa Maria da Vinha, com este nome justamente pela intensa presença vinícola na região, à época de sua construção original), edificada ainda no século XI, da qual ainda se pode encontrar vestígios, sob a sacristia da atual Basílica, cujo projeto arquitetônico se sobrepôs à velha igreja.
Do mesmo modo que os projetos arquitetônicos reconstrutivos que revisamos anteriormente, Santa Maria Novella é restaurada a partir do crescimento urbano de Florença e da incapacidade do templo religioso original em sustentar o aumento expressivo do número de fieis e visitantes. Percebemos aqui, a partir da terceira recuperação histórica que fazemos, uma coerência importante sobre a documentação florentina no que se refere à reestruturação intensa pela qual passa a cidade ao longo de seu amplo desenvolvimento urbano e comercial na transição entre a Baixa Idade Média e a Era Moderna.
O início das obras se deu, diferentemente do que ocorre com Santa Croce, através da oferta papal de indulgências, ou seja, perdão dos pecados, para aqueles que contribuíssem financeiramente com o projeto de reconstrução de Santa Maria Novella. Tal procedimento, questionável desde a sua mais profunda base religiosa, se tornaria, séculos mais tarde, o grande centro nevrálgico da Reforma Protestante empreendida por Martinho Lutero, não em Florença, mas contra o catolicismo alemão, no século XVI.
Assim como já observamos no Duomo e em Santa Croce, a assinatura arquitetônica do projeto de Santa Maria Novella não pode ser comprovada historicamente. Supostamente teria sido resultado de uma parceria entre os frades dominicanos Sisto da Firenze e Ristoro da Campi, com a colaboração de Jacopo Talenti para o erguimento do campanário e de grande parte da estrutura do mosteiro dominicano. As obras são praticamente concluídas no início do século XV e a Basilica é finalmente consagrada e aberta ao público em 1420, pelo Papa Martinho V.
O que se pode afirmar, contudo, foram as três mais importantes contribuições arquitetônicas posteriores à conclusão das obras. A primeira, talvez das mais famosas, foi a intervenção de Leon Battista Alberti na construção da fachada do templo, no desenho do grande portal central que permanece visível aos visitantes até hoje. A segunda, no século XVI e após o histórico Concílio de Trento, executada pelo renomadíssimo e já citado Giorgio Vasari, foi a remoção interna do recinto do coro e a reconstrução dos altares laterais, que acabou por encurtar as janelas góticas originais. A seguir, no mesmo século, a Capella Gaddi é adicionada ao projeto, conforme instruções de Giovanni Antonio Dosio. Diversas capelas, inclusive, fazem parte do complexo arquitetônico da Basilica, tais como: Capela de Bardi, Cappella Maggiore ou Capela Espanhola. Cada uma delas recebe afrescos e demais obras dos mais renomados artesãos da época, marcando a edificação como um centro não somente religioso, como histórico e artístico.
Além de toda a sua histórica estrutura exterior, chamam a atenção os objetos e disposição artística de sua área interna, sendo até os dias atuais o principal atrativo para milhões de visitantes do mundo todo. Logo ao adentrar sua nave em forma de cruz latina, com corredor principal ladeado por dois outros, chama a atenção a renomada Cruz de Giotto, erigida ali no século XIV, como elemento essencial do altar principal. Outras obras, como a cruz de madeira e o púlpito de mármore, assinados por Brunelleschi; ou a Natividade de Sandro Botticelli, localizada acima da porta principal, fazem parte do extenso acervo artístico de Santa Maria Novella.
Foto de capa: Duomo de Santa Maria del Fiore – Scaliger / Bigstock